A fúria dos judeus ultraortodoxos contra o recrutamento militar em Israel

por Carla Quirino - RTP
Ronen Zvulun - Reuters

Milhares de judeus ultraortodoxos entraram em confronto com a polícia israelita no centro de Jerusalém, no passado domingo. Estão contra uma decisão histórica do Supremo Tribunal, segundo a qual os jovens haredi devem ser recrutados para o exército do Estado hebraico. O novo decreto dita ainda a perda de privilégios no que toca ao acesso a benefícios governamentais.

A comunidade judaica ultraortodoxa ou haredi de Israel protestou em massa nas ruas de Mea Shearim, o coração da comunidade em Jerusalém.

Dezenas de milhares de homens e rapazes vestidos de preto e branco reuniram-se no bairro ultraortodoxo e, depois do anoitecer, o protesto seguiu em direção ao centro de Jerusalém, onde começaram os confrontos com a polícia.A decisão do Supremo pode levar ao colapso da coligação governamental do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu.

Além de a multidão em fúria ter queimado caixotes do lixo durante o protesto, as autoridades israelitas relatam que os manifestantes arremessaram e atacaram com pedras o carro do ministro ultraortodoxo da Habitação, Yitzhak Goldknopf, e o ex-ministro da Saúde Yaakov Litzman. 

Canhões de água cheios de um líquido fétido branco e polícias a cavalo foram usados para dispersar a multidão. Vários polícias ficaram feridos durante os confrontos, incluindo uma mulher que foi atingida na cabeça por um objeto arremessado. Pelo menos cinco pessoas foram detidas por violar a ordem pública.

Ainda durante o dia de domingo, antes dos confrontos com a polícia, milhares de homens lotaram uma praça e juntaram-se em orações. Muitos seguravam cartazes a criticar o Governo, nos quais se lia "nem um único homem deverá ser recrutado", "Não ao recrutamento para o exército inimigo" ou mesmo, "Os sábios decidiram: é melhor morrer do que ser recrutado".

"Preferimos morrer como judeus do que viver como sionistas", diz o cartaz. Protesto dos judeus ultraortodoxos em Jerusalém | Ronen Zvulun - Reuters
Serviço militar obrigatório, mas não para todos

O serviço militar é obrigatório para a maioria dos homens e mulheres judeus em Israel. Porém, os partidos ultraortodoxos politicamente poderosos conquistaram certas isenções para os seus seguidores serem poupados ao serviço militar e, em contrapartida, passariam as vidas a estudar em seminários religiosos.

A comunidade começou por ser uma pequena minoria, mas cresceu e agora tem um milhão de membros, compondo 12,9 por cento da população.

Este acordo de longa data nunca foi bem visto entre os restantes residentes. Tal sentimento exacerbou-se durante os últimos oito meses com os confrontos em Gaza e o balanço de mais de 600 soldados mortos em combate. Dezenas de milhares de reservistas foram chamados a apresentarem-se para cumprir o dever militar, destruindo carreiras, negócios e vidas.

“O meu filho já está na reserva há 200 dias. Quantos anos vão quer que ele cumpra? Não têm vergonha?”, perguntou Mor Shamgar enquanto repreendia um conselheiro de segurança nacional de Israel, numa conferência recente em Herzliya.

Com os líderes do exército a contestar a escassez de efetivo militar, a mãe Mor Shamgar - que diz ter votado anteriormente no partido do primeiro-ministro - acredita que o Governo "lidou muito mal com a situação, colocando a sua própria sobrevivência política à frente dos interesses nacionais na questão do recrutamento”.

E insiste: “Netanyahu o seu gangue cometeram um grande erro de julgamento ao pensar que poderiam esquivar-se”.

“Porque uma vez que é imposto a metade da população que tem de ir para o exército, não se pode impor que a outra metade não vá para o exército".

“Eu vejo isto como uma questão de igualdade. Não se pode fazer leis que tornem metade da população cidadãos de segunda classe”, deixa claro Shamgar, citada na BBC.
Os ultraortodoxos vão à guerra

Historicamente, os ultraortodoxos preenchem um setor isolado da sociedade que tem resistido à mudança. Mas com a crescente pressão pública em Israel e uma guerra sem fim à vista as alterações surgem como inevitáveis.

A 25 de junho, o tribunal decidiu que, como uma lei temporária que isentava os estudantes da yeshiva (instituições de ensino que se dedicam ao estudo de textos religiosos) já tinha expirado há um ano, as Forças de Defesa podem agora começar a convocá-los para o serviço militar.

Porém, os partidos ultraortodoxos e os apoiantes advertem que forçar os seus homens a servir no exército destruirá o modo de vida de gerações. Sustentam que os jovens da comunidade devem estudar a Torá e não servir nas Forças de Defesa de Israel, pois temem que tal os exponha ao mundo exterior e os leve a abandonar a vida religiosa.

Mais de 60 mil homens ultraortodoxos estão registados como estudantes de yeshiva e têm recebido isenção do serviço militar. Desde a decisão do Supremo Tribunal, o exército foi instruído a recrutar mais três mil da comunidade, além dos cerca dos 1.500 que já servem.

Na reunião do Comissão de Relações Exteriores e Defesa do Knesset nesta segunda-feira, o ministro israelita da Defesa, Yoav Gallant, afirmou que são urgentemente necessários cerca de dez mil soldados adicionais para que o exército israelita possa operar nas frentes sul e norte simultaneamente.

Os planos em curso também deixam instruções para recrutar mais ultraortodoxos nos próximos anos. Gallant recomendou que o número de ultraortodoxos recrutados aumente em cinco por cento a cada ano durante os próximos cinco. Esta norma dependerá ainda de um acordo bipartidário, observou o ministro.
O Netzah Yehuda é até agora o único batalhão do exército israelita criado especificamente para atender às exigências ultraortodoxas, com requisitos especiais de comida kosher e pausas para orações e ritos diários. Estas unidades militares separadas não incluem mulheres.

Para o rabino Yehoshua Pfeffer, que apelou ao exército para que melhorasse a sua relação com a comunidade ultraortodoxa, será possível estabelecer mais compromissos para que novas brigadas Haredi possam ser formadas.

“Cabe aos Haredim sentarem-se à mesa e dizerem que estão prontos para verdadeiras concessões, que estão prontos para sair da nossa zona de conforto tradicional e fazer algo proativo para encontrar a estrutura certa que permitirá que mais Haredim se integrem”, argumenta o rabino.

Pfeffer sugere que milhares de jovens ultraortodoxos que atualmente não estudam a Torá na íntegra — e por isso são elementos que não cumprem o rigor académico — “sejam encorajados a juntar-se ao exército, assim como outros judeus israelitas da mesma idade.

E deixa recomendações. Se a força israelita pretende viver de acordo com a reputação conhecida como “o Exército do Povo”, o rabino Pfeffer exalta a necessidade de a entidade militar "fazer mais para construir bases de confiança e melhorar o seu relacionamento com a comunidade”. “Há muitas reformulações a fazer e não é preciso ter conhecimento científico espacial”.
Coligação ameaçada

Os partidos ultraortodoxos são membros importantes da coaligação governamental de Netanyahu e podem forçar novas eleições se decidirem deixar o Governo em protesto.

Apesar das ameaças anteriores, até agora, os partidos ultraortodoxos não abandonaram a coligação por causa do recrutamento militar. Porém, poderão recuperar um projeto de lei mais antigo - antes rejeitado pelos líderes Haredi - que levaria ao alistamento parcial da comunidade.

No início deste ano, uma investigação do Instituto de Democracia de Israel revelou que 70 por cento dos judeus israelitas deixaram claro que as isenções gerais do serviço militar para os ultraortodoxos deveriam acabar.
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